Quando a inclusão é só discurso: o caso da Unir e o apagamento de estudantes autistas
By Josineide Gonçalves da Silva

Quando a inclusão é só discurso: o caso da Unir e o apagamento de estudantes autistas

Universidades ainda confundem inclusão com matrícula e deixam estudantes autistas sem o suporte necessário para permanecer no ensino superior

Por Josi Gonçalves

A Universidade Federal de Rondônia (Unir) costuma exibir com orgulho seus programas de inclusão. Nos formulários oficiais, nos editais e nas solenidades, o discurso é o mesmo: a instituição cumpre o dever constitucional de assegurar acesso à educação superior para pessoas com deficiência, incluindo autistas e outros neurodivergentes. No papel, parece uma política exemplar. Na prática, o que se vê é um sistema que abre a porta, mas fecha o caminho.

Um amigo meu, autista, ingressou no curso de Direito da Unir por meio da reserva de vagas para pessoas com deficiência (PcD). Foi recebido com palmas simbólicas, mas com pouco ou nenhum suporte concreto. A universidade cumpriu a parte que lhe cabia no edital: garantir o ingresso. E falhou em tudo o que vem depois: adaptação pedagógica, acompanhamento psicológico, formação de professores e criação de uma rede efetiva de apoio.

O caso dele não é isolado. Representa o que o Programa Incluir, criado pelo Ministério da Educação em 2005, tentou evitar: a exclusão velada de estudantes com deficiência dentro das próprias instituições de ensino superior. O programa prevê que as universidades federais promovam não apenas o acesso, mas também a permanência de alunos com deficiência, por meio de ações estruturantes de acessibilidade pedagógica, arquitetônica e comunicacional. 

A Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) reforça esse dever no artigo 27, ao determinar que o poder público garanta “sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.”

Nada disso parece chegar, de fato, às salas de aula.

A inclusão que não sai do papel

Em 2023, o professor Delson Barcelos, então presidente do Departamento de Ciências Jurídicas da Unir, promoveu um curso para docentes sobre o Plano Educacional Individualizado (PEI), ferramenta prevista na política de educação inclusiva e voltada à adequação do conteúdo e da metodologia às necessidades específicas do aluno. Foi um passo relevante, mas isolado. Poucos professores compareceram. Os que foram, ainda dependiam de um suporte posterior necessário para aplicar o que aprenderam. Não se combate décadas de apagamento em três dias de oficina.

Desde então, nenhuma política consistente foi implementada. A Unir abriu recentemente um processo seletivo para monitores de apoio às Pessoas com Deficiência. A bolsa é de R$ 700, valor que cobre parte das despesas básicas, como transporte, mas ainda é insuficiente para garantir dedicação integral ou continuidade do apoio ao longo do semestre.

Além disso, a metodologia é confusa: alunos de um curso prestam suporte a colegas de outro, sem orientação clara sobre como agir diante de desafios pedagógicos específicos, como os que envolvem o espectro autista.

A violência silenciosa da exclusão acadêmica

Meu amigo autista enfrentou tudo isso em silêncio. Fiz o que pude para ajudá-lo, inclusive executando tarefas que deveriam ser acompanhadas e adaptadas pela universidade. Ele era visto como um fardo. Professores e colegas não sabiam como lidar com ele e, muitas vezes, o julgavam incapaz de estar ali.

Um episódio, entre tantos, me marcou: em uma apresentação oral, onde o acolhi para ser meu parceiro de atividade, ele leu com dificuldade um trecho do trabalho. O professor, sem entender que a fala fragmentada fazia parte da condição dele, rebaixou a nossa nota. No privado, disse ao professor: “Ajudei ao colega e ao senhor, que não sabia o que fazer com ele, e o senhor nos puniu”. Essa é uma das formas mais sutis e cruéis de exclusão: quando a avaliação ignora a diferença e transforma o esforço em punição.

O direito à educação das pessoas com Transtorno do Espectro Autista não é uma concessão de boa vontade. Está assegurado em lei. O artigo 3º da Lei nº 12.764/2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, garante expressamente o acesso à educação e ao ensino profissionalizante, além de assegurar, em casos de necessidade comprovada, o direito a acompanhante especializado durante as atividades escolares.

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Trata-se de um mandamento legal que complementa a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) e se articula com o princípio da igualdade material previsto na Constituição Federal, segundo o qual é dever do Estado não apenas abrir as portas da universidade, mas garantir que todos possam permanecer nelas. A ausência de suporte adequado, portanto, não é uma falha administrativa. É uma violação de direitos. A lei não pede favores. Impõe obrigações.

Permanecer é mais difícil do que entrar

As universidades brasileiras ainda confundem inclusão com admissão. Abrir vagas é fácil, garantir permanência é o desafio. A Unir, como diversas outras instituições públicas, exibe o ingresso de pessoas com deficiência como troféu institucional, mas não oferece suporte real.

O resultado é previsível: evasão. Não por falta de capacidade intelectual, mas pela ausência de condições de estudo e acolhimento. O estudante autista é empurrado para fora de um sistema que diz incluí-lo. Ele não desiste da universidade; é a universidade que desiste dele.

O que significa, afinal, ser uma universidade inclusiva?

Ser inclusiva é mais do que cumprir tabela. Significa formar professores, adaptar materiais, revisar critérios de avaliação e reconhecer diferentes modos de aprender e se comunicar. Significa admitir que igualdade não é tratar todos do mesmo jeito, mas garantir a cada um as condições necessárias para aprender.

Enquanto a Unir, e tantas outras instituições, continuar confundindo burocracia com inclusão, seguirá bela por fora e bolorenta por dentro.

E meu amigo, que um dia sonhou em ser advogado, continuará sem diploma. Não por falta de mérito, mas por falta de quem o escute e o acolha.

  • 2 Comments
  • 20 de outubro de 2025

Comments

  1. Cecília Martiniano
    20 de outubro de 2025

    Lamentamos tamanho descaso, à espera de dias melhores no campo da inclusão

  2. Cassia
    20 de outubro de 2025

    Parabéns, Josi Gonçalves! Você foi cirúrgica expondo a verdade que a muito tempo deveria estar escancarada.

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